Era
aquela catinga que arde até os olhos, sem qualquer exagero. E olha que sempre
pratiquei esportes, joguei futebol, pedalei, sempre suando debaixo do sol e
com um monte de gente suada do lado. Sempre andei de ônibus, mesmo quando tinha
carro. E vira e mexe a gente sente, algum dia todo mundo já sentiu. O famoso
“cecê”, ou "CC", não importa como se escreve. O que importa é que estava
fedido e o povo todo em volta se sentindo incomodado.
Eu
cheguei a conferir, cheirei debaixo do meu próprio braço para ver se eu não
tinha dado esse azar, mas me lembrava que ao sair de casa passei bastante
desodorante por causa da viagem longa, e ainda um pouco de perfume. A senhora sentada na poltrona logo atrás de
mim falou “Não filho, não se preocupe, a gente viu ele passando, foi lá pra
trás graças a Deus, daqui a pouco deve melhorar.” Eu perguntei o que tinha
acontecido.
“Foi
apenas um cara que passou bastante suado, parecia que tinha corrido o caminho
inteiro até o aeroporto, moço.” – disse a senhora, toda chique o morrendo de
rir com as amigas. Sei lá. Só sei que estava cheirando mal demais. Tão fedido
que dava até náuseas. Ninguém estava aguentando e começaram até a fazer
piadinhas. Só escutei algumas pessoas em volta.
- “Será
que tem algum bicho morto dentro do avião”?
- “Aeromoça,
me dá um copo d’água?”
- “Moça,
podemos voar de janela aberta? É só até São Paulo!”
-
“Amor, pega o cardápio aí e veja se tem desodorante, a gente pode comprar um e
mandar entregar lá na 29C.”
E
por aí vai... na hora da decolagem a senhora do meu lado falou: - “Vamos ver se
nenhum Urubu segue o avião, hoje em dia esse negócio de ave é perigoso, elas
entram na turbina e pode ser o maior estrago ".
Ela estava com uma cara de azarenta que me deu até arrepios. Pensei em Deus,
queria chegar bem ao meu destino, mesmo no meio daquele cheiro insuportável.
Com
o tempo, acho que a coisa foi se diluindo no ar, mas no ar condicionado. O que piora a situação, na verdade. Peguei uma
blusa de frio na mochila e quando a coloquei senti o cheiro do armário, que
sempre me faz espirrar. Mas desta vez não aconteceu nada, respirei fundo, como
se estivesse cansado, e foi muito bom.
“Calma
moço”, disse a senhora. “Já está passando...”. Olhamos um para o outro e demos
aquela gargalhada. Percebi pelo hálito que ela era fumante, então entendi o
sofrimento dobrado que estava sentindo. Fumante não sente cheiro. O que ela
estava sentindo deveria ser um pouquinho, uma amostra da verdadeira "maré", da
catinga, do mal cheiro que todos estavam sentindo.
Não
aguentei, levantei para esticar as pernas e dar uma boa respirada abrindo os
braços, como faço quando estou com preguiça. Só que dessa vez estava pedindo
socorro, parece que libertava a alma. Mas a tal da “boa respirada”, só me fez
sentir de novo aquela catinga, aquela "zika”, odor do capeta, acho que nem o
Tinhoso aguentaria.
Fiquei
tonto, quase caí. Aquela “subaqueira” estava me deixando tonto.
“Senhor,
por favor fique no seu lugar e aperte o cinto, já vamos decolar..”- disse uma
das aeromoças.
“Tudo
bem moça..”- disse para ela fazendo uma cara de coitado e olhando para a parte
traseira da aeronave. Ela me olhou, virou para trás, e de repente soltou uma
gargalhada, com certeza bem fora dos protocolos da companhia aérea, e
rapidamente tapou a boca e correu para o fundo do avião.
“Começou
a feder de novo”- disse ela quase sussurrando olhando para trás enquanto corria
para passar os procedimentos de segurança.
Quando
o comissário do meu lado mostrou como se colocava a máscara de oxigênio, o
avião inteiro soltou uma gargalhada, parecia show de auditório, sem
brincadeira. Eu juro que foi verdade. O comissário quase não aguentou terminar
de passar os procedimentos, de tanto rir.
“Moço...",
- gritou uma senhora lá da frente, - “as máscaras só são ativadas em caso de
despressurização?”
Nova
onda de gargalhadas.
“Bem
vindos senhores passageiros.” – falou o piloto do avião no sistema de som.
“Nosso
voô terá duração de....”, e todos escutaram um soluço seguido de uma tosse que
parecia ânsia de vômito. “... duas horas e meia”, terminou o piloto e todos
juraram que ele estava com voz de quem parecia estar chorando. Mas era um risinho bem maroto, lá no fundo.
“Gente,
tá danado, chegou até na cabine...” fal
ou de novo a madame do meu lado. A gente
já estava era morrendo de rir, nem ligava mais para o cheiro.
Foi
um voo muito divertido, apesar de fedorento. Parece que todo mundo precisava
daquele momento de descontração, e acabamos entrando numa vibração coletiva que
ao final nem se sabia mais, aliás nunca se soube, quem era o desgraçado
fedorento que estava lá com aquele odor do capeta.
Não
importava mais, o avião aterrissou. Ouvi palmas, coisa que já não acontece há
tempos. Antigamente o povo batia palmas quando o voo chegava são e salvo em seu
destino.
Foi
um momento fraterno, de solidariedade e bom humor. Mas ninguém parecia querer
ficar na aeronave.
Vi
um cara tentando abrir a porta de emergência, claro, de brincadeira. As
aeromoças não paravam de rir.
Fomos
embora, um a um, cumprimentando o piloto e os comissários lá na frente, e todos
que passavam ou davam uma olhada para trás, ou simplesmente faziam mais algum
comentário, mais risadas.
Todos
estavam parecendo bem alegres. E todos partiram para mais um dia de trabalho, ou
passeio, ou curtição, ou qualquer coisa. Senti que todos estavam um pouco mais
felizes.
Nunca
mais aconteceu comigo. Mas toda vez que entro de novo em algum avião, lembro
daquele cheiro, e começo a sorrir pra todo mundo.
Aquele
cheiro de Urubu, aquela catinga, tinha nos maltratado. Mas todos saíram um pouco mais
felizes, e sorridentes. Espero nunca mais sentir aquele cheiro, mas espero
sempre ter motivos para rir daquele jeito.
Apertem os cintos, e respirem fundo. Quem sabe ele não está aí por perto?
D. Seabra